Pedalar pode fazer com que sua saúde, seu cérebro e suas amizades mudem para sempre.
Engana-se quem pensa que pedalar uma bicicleta é apenas algo mecânico para ir do ponto A ao ponto B — ao menos não é para aquela pessoa que é apaixonada (ou que pretende se apaixonar) por parte da vida sobre duas rodas.
O ciclismo, seja esportivo ou recreativo, influencia profundamente a vida pessoal e social de quem o pratica. Ele molda hábitos, desenvolve habilidades cognitivas e fortalece laços entre pessoas com interesses semelhantes. Para entender essa transformação, podemos recorrer a três conceitos fundamentais: a Teoria do Habitus, de Pierre Bourdieu; a neuroplasticidade do sistema nervoso central (do qual nosso cérebro faz parte); e o conceito de Capital Social gerado ao interagirmos com outras pessoas (neste caso, ciclistas e/ou grupos de pedal).
Além disso, ao considerarmos, hipoteticamente, a forma como esses conceitos se interconectam, percebemos que o ciclismo é uma expressão da relação entre corpo, mente e cultura, estabelecendo correlações entre saúde e longevidade, sociologia e neurociências.
Ciclismo e Habitus: quando pedalar se torna um estilo de vida
O conceito de habitus, formulado por Pierre Bourdieu, descreve os padrões de comportamento e pensamento que adquirimos ao longo da vida por meio da socialização. Se hoje preferimos algo (uma roupa, uma comida, um lugar, um estilo musical, ou uma bicicleta!), isso não surgiu de maneira espontânea, do nada. Estas preferências, ou o caminho até elas, tiveram seu início em nossa infância, em nossos primeiros contatos sociais e em nossos primeiros anos na escola. Ao longo da vida, cada nova interação, novos conhecimentos e experiências (como a leitura deste texto, por exemplo) têm o potencial de mudar nosso habitus.
Nossa habilidade de desenvolver preferências e fazer escolhas não se limita à influência de outras pessoas (familiares, amizades, professores e colegas de trabalho), pois também depende do nosso Capital Cultural: que pode ser o Incorporado (está dentro de nós e pode ser modificado sempre que aprendemos algo novo); o Objetivado (bens); e o Institucionalizado (aprendizado formal, da escola, da faculdade, de certificações reconhecidas pela sociedade). Assim, o nosso habitus relacionado ao pedalar pode tanto ser Incorporado (pedalamos porque sabemos que é bom para o corpo, para a mente, para as relações sociais etc., e gostamos disso a ponto de querermos transformar em hábito); como também pode ser relacionado ao Capital Cultural Objetivado (por exemplo, quando compramos uma bike para pedalar e também para ser um item de coleção ou investimento, que nos trará um tipo de status que não viria se não fosse por meio da aquisição — sim, muitas bikes, além de equipamentos esportivos, também podem ser consideradas obras de arte e/ou de cultura, por um determinado grupo que lhe atribui um valor além daquele monetário).
Minhas 3T Exploro Team e Ceepo Rindō: que tanto são bikes de performance, quanto são obras de arte
PS: E, para não restar dúvida entre hábito e habitus, o primeiro é o que fazemos com frequência, já de maneira natural e que foi adquirido pela persistência até se tornar algo “mecânico”; já o segundo diz respeito não apenas ao porquê fazemos algo, mas ao como fazemos, com quem fazemos, o valor que este fazer tem para nós e como nos comportamos ou reagimos ao fazê-lo.
***
No contexto do ciclismo, isso significa que cada pedalada contribui para a formação de um conjunto de disposições incorporadas, que influenciam desde a escolha da bicicleta e dos equipamentos até a forma como nos relacionamos com o espaço urbano ou trilhas. Como Bourdieu afirma, "O habitus é um sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes." (Bourdieu, 1980). Em outras palavras, o Habitus, só se dá a partir do momento em que está internalizado em nós (a estrutura do nosso modo de pensar e ver o mundo) e é o que faz com que, ao interagirmos com o mundo, simultaneamente, mudemos o mundo que nos muda.
Assim, com o tempo, o que antes exigia esforço consciente – como equilibrar-se na bicicleta, entender as marchas ou escolher a melhor rota – torna-se intuitivo. Esse processo reflete diretamente a capacidade do cérebro de aprender e se adaptar, um fenômeno conhecido como neuroplasticidade.
A neuroplasticidade e o impacto do ciclismo no cérebro
A neuroplasticidade é a capacidade do sistema nervoso central de se adaptar e reorganizar em resposta a novos estímulos. O ciclismo, por ser uma atividade que exige coordenação motora, tomada de decisão rápida e planejamento espacial, tem um impacto significativo nesse processo. Nicolelis argumenta que "Viver é sobretudo dissipar energia de modo a incorporar informação em matéria orgânica." (Nicolelis, 2020). No ciclismo, essa assimilação ocorre na forma de aprendizado motor e percepção espacial refinada (pois dissipamos calor durante o consumo de calorias e, em troca, isso é convertido em novas informações), criando um cérebro (matéria orgânica) mais eficiente e resiliente — não apenas no que diz respeito aos assuntos da bicicleta, mas também em nossa vida: família, trabalho, aprendizado de coisas novas etc.
Estudos indicam que atividades físicas como o ciclismo promovem a criação de novas conexões neurais e fortalecem as já existentes. Uma pesquisa publicada na Revista Brasileira de Medicina do Esporte (Filho, Ferreira, Junior et al., 2014) destaca que o treinamento aeróbio regular pode levar à proliferação de novos capilares cerebrais, neurogênese e surgimento de novas conexões sinápticas. Curiosidade: “O cérebro, embora constitua apenas 2% da massa corporal, pode ser responsável por até 20% do consumo energético total”.
Já o neurologista Dr. Mauro Atra, do Hospital do Coração (HCor), afirma que “a prática regular de exercícios ajuda a pensar com mais clareza, melhora a memória e proporciona um grande ganho na aprendizagem, sugerindo que o exercício pode alterar a própria estrutura do cérebro ao incentivar o nascimento e o desenvolvimento de neurônios.”
Além disso, a prática regular libera neurotransmissores como a dopamina e a serotonina, que melhoram o humor e reduzem o estresse. Isso explica por que muitos ciclistas relatam sentir-se mais focados, relaxados e motivados após um pedal. Sanjay Gupta complementa essa visão ao afirmar que "Nossas escolhas de vida têm uma contribuição enorme para o processo de envelhecimento e o risco de doenças – provavelmente tanto ou talvez até mais do que nossa genética." (Gupta, 2021). Dessa forma, o ciclismo pode ser visto não apenas como um exercício físico, mas também como uma ferramenta poderosa para a manutenção da saúde mental e cognitiva.
O capital social e as conexões geradas pelo ciclismo
Além dos benefícios individuais, o ciclismo também promove interações sociais que fortalecem o capital social – o conjunto de relações e redes que uma pessoa constrói ao longo da vida. Bourdieu define capital social como "o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento e reconhecimento mútuo." (Bourdieu, 1980). No universo do ciclismo, isso se manifesta em grupos de pedal, eventos e competições, onde os ciclistas compartilham experiências, aprendizados e valores comuns.
As redes sociais digitais, como o Strava, Instagram e outros relacionados com os apps podemos utilizar em rolos de treino smart e/ou interativo, amplificam esse capital social ao possibilitar a criação de desafios, o acompanhamento do desempenho de outros ciclistas e o estímulo mútuo à superação. Como apontam Ma & Sayama, "As interações sociais em comunidades online estão significativamente associadas às recuperações atuais e futuras de pacientes com transtornos mentais." (Ma & Sayama, 2014). Dessa forma, o ambiente social criado pelo ciclismo, seja presencial ou digitalmente mediado, reforça a adesão à prática e melhora o bem-estar psicológico dos praticantes.
Contudo, é preciso preocupar-se com um outro lado desta mesma moeda. A sociologia nos ajuda a entender o papel do ciclismo na vida dos indivíduos e das comunidades, mostrando que essa prática não é neutra, mas atravessada por relações de poder, cultura e identidade. Como afirma Bourdieu, “A sociologia é um esporte de combate, uma forma de autodefesa.” (Bourdieu, 2001). Ao aplicar esse olhar crítico, podemos perceber como o ciclismo pode ser tanto um mecanismo de inclusão quanto de exclusão, dependendo das condições de acesso a bicicletas (performance ou que se pretende ou status que pode acolher ou segregar?) e infraestrutura (vias, segurança, agressividade no convívio com veículos e pedestres).

E, em especial, aos grupos de pedal (incentivam os membros ou os segregam por status, capital econômico, classe social, valor monetário da bicicleta etc.?), pequenos gestos de incentivo entre ciclistas podem fazer uma grande diferença na continuidade da prática esportiva. Receber feedback positivo online evoca sentimentos de conexão social e reduz a solidão geral.
A bicicleta como agente de transformação
A bicicleta não é apenas um meio de locomoção ou um instrumento de lazer; ela se insere em um sistema de valores e práticas sociais que moldam nossa percepção do mundo e de nós mesmos. O ciclismo, ao mesmo tempo em que fortalece nosso habitus e estrutura nossa rede de interações sociais, também remodela nosso cérebro e nossa capacidade cognitiva. Bourdieu nos lembra que "O gosto classifica, e classifica o classificante." (Bourdieu apud Alves, 2008) — desta maneira, entende-se que os gostos e preferências de um indivíduo o diferenciam de outros. Podemos estender essa lógica ao ciclismo: o estilo de pedal (sprints em velocidade, solo, em pelotão, curta, longa ou ultradistância), a escolha do equipamento (tipo de bicicleta e seus componentes) e o tipo de comunidade em que se insere o ciclista influenciam tanto sua identidade quanto seu desempenho e seu engajamento com a prática.
Seja no asfalto (bicicletas road/speed), na terra (mountain bikes - MTBs) ou no cascalho (estradão de terra) ou misto entre cascalho e asfalto (gravel bikes), cada pedalada contribui para um processo contínuo de aprendizado e evolução. O ciclismo não é apenas um esporte ou um meio de transporte – é uma ferramenta poderosa de transformação pessoal e social. Como Sanjay Gupta aponta, "Preocupe-se menos com seus genes e pare de usá-los como desculpa. Em vez disso, concentre-se nas coisas que você pode escolher, grandes e pequenas, dia após dia." (Gupta, 2021). Da mesma forma, cada ciclista constrói sua própria jornada sobre duas rodas, equilibrando corpo, mente e sociedade.
Tem dia que é para explorar, noutros para apenas um café. E tem dia que é de treino forte. – Seja com a Ceepo Rindō, seja com a 3T Exploro Team.
Maneiras de pensar o ciclismo para que ele possa conviver a rotina de sua vida
Iniciantes (para quem quer começar)
Encare o ciclismo como um momento de lazer e bem-estar, sem cobranças de desempenho.
Encontre rotas seguras e acessíveis para se sentir confortável pedalando.
Use a bicicleta como um meio de explorar a cidade ou a natureza, criando uma conexão com o ambiente.
Considere o ciclismo como parte de sua rotina diária, seja para deslocamento ou atividade física.
Foque na diversão e nos pequenos avanços, respeitando seu próprio ritmo.
Intermediários (para quem quer sair do iniciante-recreativo e deseja tornar o ciclismo um esporte para treino)
Crie uma rotina de treinos estruturados, equilibrando intensidade e descanso.
Invista em conhecimento e profissionais especializados para aprender sobre técnicas de pedalada, nutrição e biomecânica (bike fit).
Participe de pedais em grupo para desenvolver habilidades e motivação.
Teste diferentes tipos de terrenos e modalidades (estrada, MTB, gravel/cascalho), bem como tipos diferentes de pneus, para encontrar seu estilo preferido.
Comece a monitorar métricas como velocidade, cadência, frequência cardíaca e potência (usando um pedivela com medidor de potência) para acompanhar sua evolução.
Avançado (aos ciclistas amadores e profissionais que buscam resultados em provas e desafios)
Contrate treinamento para ter estratégias baseadas em periodização e metas específicas.
Aprimore a capacidade mental para lidar com desafios e manter a consistência.
Invista em equipamentos, setups e ajustes biomecânicos (como o bike fit) que otimizem sua performance.
Participe de competições para se desafiar e medir sua evolução.
Equilibre treinos, recuperação e nutrição para evitar lesões e maximizar o desempenho.
Alguns benefícios do ciclismo para cada nível de praticante
Iniciantes
Melhoria da saúde cardiovascular e do condicionamento físico geral.
Redução do estresse e aumento da sensação de bem-estar.
Fortalecimento do habitus ao integrar o ciclismo como parte da rotina e identidade pessoal.
Maior neuroplasticidade ao estimular o aprendizado motor e a adaptação a novos desafios.
Maior socialização e pertencimento por meio de interações com outros ciclistas.
Facilidade de locomoção sustentável e econômica.
Maior contato com a natureza e exploração de novos lugares.
Inclusão em uma comunidade acolhedora de ciclistas, ampliando o capital social.
Intermediários
Aumento da resistência física e mental para treinos mais longos e desafiadores.
Evolução na técnica e no controle da bicicleta, aprimorando as conexões neurais e a adaptação cerebral.
Construção de uma rede social mais sólida, participando de grupos de pedal e eventos organizados.
Fortalecimento do habitus esportivo, tornando o ciclismo parte essencial da vida.
Participação em eventos esportivos, promovendo disciplina, superação e competitividade.
Maior controle sobre a alimentação e hábitos saudáveis.
Maior neuroplasticidade ao lidar com mudanças de terrenos e estratégias de pedalada.
Expansão do capital social por meio do compartilhamento de experiências e do aprendizado conjunto.
Avançado
Melhoria do VO2 máximo e da capacidade aeróbica para melhor desempenho em provas.
Desenvolvimento de estratégias competitivas e táticas de corrida, exigindo aprimoramento da cognição e da tomada de decisão.
Otimização do corpo para resistência, força e recuperação rápida.
Construção de uma mentalidade resiliente para lidar com desafios físicos e psicológicos.
Crescimento da identidade esportiva (habitus) e fortalecimento do capital social ao representar equipes e comunidades.
Expansão da rede de contatos, permitindo acesso a treinadores, patrocinadores e grupos de elite.
Maior neuroplasticidade ao lidar com situações de pressão e mudanças de ritmo durante provas.
Sensação de pertencimento e reconhecimento no meio esportivo, reforçando vínculos sociais e emocionais.
E para você, de que forma a bicicleta tem impactado sua vida?
PS: tudo isso vale para qualquer atividade física que você já tenha incorporado ou que deseja incorporar ao seu dia a dia :)
--------------
Referências
ALVES, E.R. Pierre Bourdieu: a distinção de um legado de práticas e valores culturais. Resenhas. Soc. Estado 23(1), 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69922008000100009. Acesso em: 08 fev. 2025
BOURDIEU, P. O poder simbólico. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
BOURDIEU, P. Sociologia como um esporte de combate [documentário online]. Direção de Pierre Carles, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TlbAd2hwQms 2001. Acesso em: 11 fev. 2025
FILHO, J.F.; FERREIRA, M.N.; JUNIOR, H.F. et al. Exercício físico e plasticidade cerebral: revisão dos mecanismos neurais envolvidos. Revista Brasileira de Medicina do Esporte, v. 20, n. 6, p. 488-495, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbme/a/WWjJfVxVrhMTJ9HF8YP5VGM. Acesso em: 02 fev. 2025.
GUPTA, S. 12 semanas para afiar sua mente. Rio de Janeiro: Sextante, 2021.
HCOR. Neurologista do HCor incentiva a prática de exercícios físicos para beneficiar o cérebro. Site do HCor [Online]. Disponível em: https://www.hcor.com.br/imprensa/noticias/neurologista-do-hcor-incentiva-a-pratica-de-exercicios-fisicos-para-beneficiar-o-cerebro/. Acesso em: 03 fev. 2025.
MA, X.; SAYAMA, H. Mental disorder recovery correlated with centralities and interactions on an online social network. arXiv preprint, arXiv:1404.0578, 2014. Disponível em: https://arxiv.org/abs/1404.0578. Acesso em: 02 fev. 2025.
MONTEIRO, J.M. 10 lições sobre Bourdieu. Rio de Janeiro: Vozes, 2018.
NICOLELIS, M. O verdadeiro criador de tudo: como o cérebro humano esculpiu o universo como conhecemos. São Paulo: Planeta, 2020.
RIBEIRO, T. Não se aposente e peça ajuda, diz Sanjay Gupta sobre saúde do cérebro. Entrevista da 2º. Folha de São Paulo (online). 11 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2024/02/nao-se-aposente-e-peca-ajuda-diz-sanjay-gupta-sobre-saude-do-cerebro.shtml. Acesso em: 10 fev. 2025.
Comments